sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

CARTA A TORAO




















O que sei de você é pouco e muito. Pouco se acumula no mental e muito se acumula na alma. O que eu gosto de você ocupa um grande espaço em mim, inunda meus pensamentos e me oferece um contentamento que tem se intensificado como uma bola de neve lutando para sobreviver com a proximidade do verão. O pouco que sei, não quero apagar. O pouco que ouço, não quero sufocar.

Sem memória visual,


apenas espiritual.

Sem você eu não seria eu, nesta forma e conteúdo.


Você para mim é palavras + fotos + sentimento.

Não me lembro do seu colo, rosto ou jeito. Não me lembro de como eu me sentia na sua presença. Não me lembro de sorrisos ou lágrimas, voz fina ou grossa. No filme de minha cabeça não tem movimento ou cor. O que sei de você é o que imagino e o que ouço falar. Espero que o resultado disso, seja digno de você.

E esse NÃO SABER me incomoda, como me incomoda pensar que você sofreu. Sim, pois o que ouço falar é de uma vida sofrida. As palavras vagas que ouço me chegam úmidas de lágrimas que foram choradas um dia no seio familiar. As fotos que vejo, mostram semblantes sérios . Poucas imagens, muita imaginação.

Sabemos que quando você nasceu em 13/11/1.890, seu pai Seisichi era quase tão criança quanto você, ainda era menor de idade. Sua mãe Matsu, uma jovem trabalhando numa casa de família rica, engravidou tão precocemente que não consigo imaginar a repercussão numa época em que os costumes eram tão mais conservadores que hoje. Como terá sido a sua infância , filho de jovens solteiros em pleno século XIX? Quais eram seus sonhos de criança, adolescente e jovem?

O que você sentiu quando seu pai lhe pediu para viajar para o outro lado do planeta? Que carga emocional e responsabilidade você carregou além das malas? No que você pensou nos 45 dias de viagem que o separava da segurança do conhecido do medo do desconhecido? O que será que você sentiu ao pisar pela primeira vez no Brasil? Você estava inseguro? Estava com medo?

Ah, eu não sei e talvez nunca saberei. As fontes de informação estão se esgotando e eu sinto tanto não saber mais da sua história, mesmo que contada como um filme ou novela. Saber mais de você é saber mais de mim. Quando os mais velhos da família estavam com a memória mais vívida, eu era muito jovem e não me interessava pela sua vida. Agora que há poucas fontes vivas para consultar, tenho sede de saber. Espero que compreenda e tenha para comigo a paciência e bondade que os avós tem pelos netos.
Resta-me então , no início deste 2.011, o desafio de juntar pedaços que coletei, com o que imagino que tenha sido. Isso me dá o álibi de escrever a história à minha maneira.

Na minha história, você não sofreu. Você viveu com a família de sua mãe até os 8 anos, quando então, a família de seu pai o acolheu. Seu pai , casou-se posteriormente e teve mais 8 filhos...você por sua vez, casou-se com Uta, e por vários anos não conseguiram ter filhos. Um dia, juntando a necessidade de sair de Okinawa pela dificuldade reinante na ilha, com a previsão de uma vidente de ter muitos filhos no Brasil, você decidiu vir. Uta esteve ao seu lado e como precisavam imigrar em no mínimo 3 pessoas, você trouxe seu pequeno irmão por parte de mãe, Koshin, de 16 anos junto. Mais de 50 dias depois do embarque, quando seus pais e irmãos lhe acenaram no porto, chegou feliz e sorridente, com esposa e irmão à tiracolo, mala pequena com o suficiente para começar uma vida promissora. Buscou logo juntar-se aos conterrâneos que o precederam na trajetória.

Você não sofreu com o idioma, com o calor, com a pobreza e dificuldades dos primeiros tempos. Você ficou feliz quando seu irmão Kiyomasa veio para cá ao seu chamado e também não se incomodou quando ele decidiu ir para a Argentina em 1.922. Também não ficou com ciúmes quando todos os outros irmãos que tinham ficado em Okinawa decidiram ir para lá também, cada um no seu tempo (Kiyoji, Seizen, Kiyotomi, Nabe, Seitake e Kiku), permanecendo na terra natal, apenas sua irmã Matsu. Você ficou feliz por eles e lhes desejou boa sorte como bom irmão mais velho que era, sem no entanto deixar de preocupar-se com eles, afinal, era o seu papel. Mesmo sendo um meio-irmão, sua ligação com eles era por inteiro. Se tudo não saiu como o seu pai previa, podia ser até melhor com os novos rumos que as coisas tomavam.

Na minha história, você ficou aqui e arregaçou as mangas para com o seu próprio trabalho e suor, iniciar uma vida do zero. Abraçado à sua esposa, sua companheira de viagem e de vida, você encarou os fatos como eles eram e agradeceu pela oportunidade. Sentiu saudades da terra natal, lamentou não poder nunca mais ver seus pais e irmã que ficaram torcendo por você do outro lado do mundo e mesmo assim, sentiu-se um homem de sorte.

Tratou de ser o mais feliz possível nesta terra onde felizmente o calor humano supera o calor do sol. E ficou feliz quando nasceu seu primeiro filho brasileiro (Seitaro) em 1.921. Se ele dormia num berço ou numa caixa de madeira, não fazia a menor diferença, era o seu filho. E o que tinha de melhor em sua vida, você iria dar a ele, como um bom pai que era.

O tempo passou e outros 4 filhos vieram (Kiyoko, Haruco, Shigeru e Akira), para a alegria de todos e confirmação da previsão. E isso tudo selou definitivamente o destino de nunca mais sair do Brasil. Quando tudo ia bem, os filhos crescidos, alguns deles casados e iniciando famílias próprias, você teve uma surpresa no ano de 1.957: havia deixado um filho em Okinawa, o primogênito Seikiti. Um filho antes de seu casamento, uma repetição da história de seu próprio pai.

Na minha história, independentemente das circunstâncias, você ficou surpreso. Afinal, tinha sido um romance de uma noite só e você não imaginava esse desdobramento. No meio da montanha russa emocional, aproveitou a ida de um conhecido a Okinawa e pediu-lhe que procurasse esse filho e lhe trouxesse notícias.

Elas vieram em forma de uma gravação, um depoimento triste e emocionado de um filho que nunca conhecera o pai. Você reuniu a família, e todos escutaram a história do irmão desconhecido que vivia distante. Você ficou sem saber o que sentir e surpreendeu-se sentindo saudades daquele filho nunca visto. Sentiu amor misturado com remorso e culpa, mesmo sabendo que não procedia. Afinal, você não podia imaginar. Mas sempre, o coração sente primeiro, o que a mente tenta depois entender e por vezes, não consegue.

É verdade que seu filho sofreu a dor que os filhos sem pai presente sofrem. Seu filho foi criado por outro pai e naquela época, não era fácil viver uma história assim. Você chorou em silêncio pensando no filho que sofria. Acho que tanto você quanto ele gostariam de ter se conhecido, mas imagino que não tenha sido possível por motivos que agora não sabemos e também não fazem mais diferença.

Entre este etapa e o término de sua vida terrena, está uma das fases que imagino como dolorida e introspectiva. Mesmo na minha história, não posso mudar isso. Os relatos que temos é de tristeza e depressão, mas eu me recuso a reforçar esta idéia. Eu não quero pensar em você bebendo muito, primeiro em garrafas, depois em garrafões e depois em barris. Eu quero pensar que você sentiu saudades do filho desconhecido. Sentiu não poder ter proporcionado a ele, o mesmo que proporcionou aos demais. Sentiu não tê-lo acolhido em seus braços, acompanhado sua infância e juventude. Sentiu não conhecer seus netos e bisnetos.

Por isso hoje entendo a singularidade que cada filho representa. A presença de seus 5 filhos e netos não era suficiente para aliviar a ausência do filho que ficara só em outro país. Cada filho é único e o espaço vazio dentro de você foi preenchido da forma que pôde.

A mim não cabe julgar ou especular. À sua maneira, você fez o máximo que um imigrante pode fazer em solo estrangeiro. Suas raízes estão firmes aqui e seus descendentes, sentem-se brasileiros e japoneses ao mesmo tempo. A mim cabe honrá-lo e agradecer.

Quero que saiba que temos orgulho de nossos antepassados, de nossa linhagem e história. Quero que saiba que mais do que isso, temos nos esforçado para nos conectar com os demais membros da família e que hoje temos contato com os nossos familiares em vários países, filhos, netos, bisnetos e tataranetos de seus irmãos e os seus próprios. E os filhos, netos e bisnetos de seu filho Seikiti, também o honra e agradece. Você viveu separado de seus irmãos e pais, mas isso não ocorre conosco agora, esta parte da história não se repete.

Quero que saiba também que dois de seus filhos brasileiros, Seitaro e Shigeru, foram a Okinawa conhecer o irmão Seikiti. Seu filho mais velho conheceu um pouco de você através deles, o que nos alivia o coração ainda hoje.

Quando você saiu de Okinawa em direção ao Brasil, não imaginava que sua história estaria viva por 5 gerações seguintes e que estamos nos esforçando para ensinar aos nossos próprios filhos os valores que você trouxe na bagagem da alma como um tesouro.
Onde você estiver, sorria, pois é assim que na fotografia da minha memória você estará eternizado. Em Okinawa está o Totome de nossa família, onde finalmente num único e sagrado lugar, Seishichi, Torao e Seikiti compartilham das orações, desejos e energia de seus descendentes ao redor do mundo.

• Torao Uehara faleceu em 25/03/1.969 em Campinas/SP/Brasil

9 comentários:

  1. Hola, Marcia

    He leído la Carta a Torao, y me parece simplemente FAN TAS TI CO!!!
    Lamentablemente no te puedo decir de las fechas y nombres, pero tu carta me gusto mucho.
    No es facil pintar una vida en pocas palabras. Me imagino que la mayoría de los inmigrantes sufrieron bastante, y que merecen el respeto y reconocimiento de sus descendientes... nosotros.

    Realmente me dan ganas de escribir una carta a mi Padre, a mi Madre, mis Abuelos, mi hijo, a todos...
    En fin, algún día, con una caipirinha, caipiroshka, o un red wine, lo hare... ja jaaa

    Besos y abrazos para todos!!!!

    Jorge (Yioyi. Jioji)

    ResponderExcluir
  2. Marcia, gostei muito dessa carta ao avô Torao que, como todos os imigrantes, merecem ser homenageados pela bravura e coragem de deixar seu porto seguro - terra e família - em busca de uma vida melhor. De, apesar de todas as dificuldades, ter tido e dado uma vida digna e tornado seus filhos pessoas de bem!

    Obrigada por compartilhar.

    Vilma

    ResponderExcluir
  3. Marcia: conmovedora la carta que enviaste a Toraosan...toda la emocion contenida nos llega igualmente y es un reconocimiento a toda una vida sacrificada con los riesgos asumidos en pos de una mejor calidad de vida. Una busqueda que no solamente lo movia el interes personal sino brindarle a su descendencia ese nuevo horizonte que en Okinawa suponian no podian vislumbrar.
    Me llega tambien las tristezas vividas por no haber podido tener el lazo afectivo con quienes quedaron en el furusato y el alto precio que se paga con las migraciones.
    Fueron epocas diferentes y actualmente contamos con la tecnologia para al menos poder conocernos a la distancia e intercambiar informacion de otro modo...Que extranio esto de la relacion virtual verdad? pero igual me llega el inmenso carinio que derraman hacia los parientes sanguineos...gambatte ne! dooomo arigatoo. Pepe Uehara

    ResponderExcluir
  4. Marcia,
    ¡¡¡Es hermosa y muy emotiva la carta a Torao!!!, te felicito, cariños, Michan...Buenos Aires

    ResponderExcluir
  5. Márcia,
    Fiquei emocionada ao ler esta carta ao nosso avô Torao, que não cheguei a conhecer... quando ele faleceu, eu era muito pequena, Yuki ainda nem tinha nascido. Uma homenagem e tanto! Parabéns... Akemi

    ResponderExcluir
  6. Tia, vc arrasa sempre! Orgulho de poder te ter perto de mim. Que eu continue aprendendo com vc.

    ResponderExcluir
  7. Minha amiga querida! Que linda história, fiquei emocionada. A sua verdadeira grandeza está aí, dentro de você, correndo em suas veias! Bjs

    ResponderExcluir
  8. Olá Prima! Parabéns pela carta ao nosso querido avô Torao Uehara. O meu nome Akio foi dado por ele. Mas, segundo os meus país, para simplificar foi retirado o uso do trinome depois da minha irmã Isabel Nobuko. O Dário seria Noboro e o Armando seria Kioshi. A Helena e a Luiza não sei se teriam nomes japoneses! Para o nosso avô Torao Uehara, creio que todos deveriam ter o trinome! Apenas uma curiosidade: como seriam os nomes de todos os netos dele? Abraços! (Akio)

    ResponderExcluir